segunda-feira, 30 de junho de 1997

Entrevista de Pedro Mexia a Jorge Silva Melo

???ReplayView.logoAltText???Arquivo da Web Portuguesa - ligações exteriores, formulários e caixas de pesquisa poderão não funcionar corretamente. URL: http://www.dn.pt/dnj/tex99dnj.htm   Data: 21:26:23 13 Junho, 1997 [ [esconder] ]


Entrevista


Pedro Mexia fez, há um ano, uma longa entrevista com Jorge Silva Melo, destinada à edição regular do DNJ em papel. As alterações de formato ocorridas a 28 de Maio (de oito páginas para uma, mantendo-se a versão integral apenas na Internet) levaram-no a congelar este trabalho.
 Verificando que o essencial da conversa resistiu às vicissitudes do tempo, decidiu, com ligeiras modificações, proporcionar-nos agora essa entrevista. Dada a sua extensão, vamos dividi-la em três semanas consecutivas.



  e nascer português é uma tragédia, ser cineasta português é uma tragédia ainda maior?
- Não. É muito bom, porque as condições de invenção formal e narrativa e o lado improvisado de muitas coisas são únicos no cinema. Receio que isso esteja a acabar. Estou ligado ao cinema desde 69 e garanto que os meus dias mais felizes foram aqueles em que consegui trabalhar. O mais difícil não é arranjar dinheiro, mas distribuição para os produtos estranhíssimos, originais, pessoais, secretos que vamos criando. Que haja pouca gente interessada em ouvi-los e vê-los é estranho; acho que foi sendo criada uma gigantesca barreira ideológica que impede que esses produtos frágeis, sensíveis, humanos possam chegar às pessoas suas contemporâneas. Mas não é tragédia nenhuma, pelo contrário, é um motivo de orgulho muito grande.

 - Uma pequena cinematografia como a portuguesa está "condenada" ao cinema de autor?
- Não creio que possa existir cinema sem ser de autor. Essa polémica animou os Cahiers du Cinéma nos anos 50. Godard diz que a Cinemateca é uma espécie de Orfeu que olha para trás e portanto perde a sua Eurídice, vai matando o cinema que está atrás de si próprio, vai deixando morrer. Acho que isso é um bocado verdade. Mas quando eu nasci para o cinema já o autor era a personagem-chave; foi muito depois do Mankiewicz. É indispensável que o cinema contemporâneo, depois de Rosselini, seja muito pessoal. Nos anos 80 renasceu uma ideia do cinema grande espectáculo, mas não me interessa de todo.

 - Mas parece, até por exemplos recentes no cinema português, que em termos de público um cinema mais americanizado, menos pessoal, tem tido algum sucesso.
- Sim e não. Os últimos filmes do cinema português têm corrido razoavelmente bem, ou seja, há uma apetência pela diversidade das formas. Houve sempre no cinema português grandes êxitos - O Lugar do Morto, o Adão e Eva, a Crónica dos Bons Malandros - mas são todos projectos muito pessoais. Ao contrário do cinema que muitas vezes se quer hollywoodiano, o Joaquim Leitão tem um olhar muito pessoal, há ali uma vontade de narrar extremamente pessoal. Acho que é um equívoco pensar-se que ele faz um cinema industrial.

 - Não há por parte de alguns cineastas uma tendência para a abdicação? Por exemplo, o caso do Galvão Telles, que a certa altura faz A Vida é Bela...
- Mas isso é uma monstruosidade normal de solidão, é uma pessoa desesperada por não ter encontrado o sucesso, e que pensa que achou a receita para viver o resto da vida reconciliado com o público. Não é esse o caso do Joaquim Leitão, que tem da humanidade uma visão pessoal, mesmo quando essa visão coincide com a de algum cinema americano pós anos 70. Ele entende-se bem com essa forma de narrar, tal como o António Lobo Antunes se identifica com uma determinada narrativa contemporânea americana. São pessoas que têm alguns pontos de contacto. Aliás, há um filme do Joaquim Leitão, Uma Vida Normal, que podia ser do António Lobo Antunes...

 - Sempre que aparece algo nessa linha "americana", lança-se a ideia de que este é que é um filme que dá gosto as pessoas verem...
- Mas isso também acontece na música e na literatura. Quando surgiu o Lobo Antunes foi a mesma coisa: "Agora finalmente há um romance português que se pode ler, não é só a chatice do costume". É uma ideia muito esquisita numa cultura tão tradicional como a portuguesa, parece que não existia Cardoso Pires, Redol, Eça de Queiroz, ... ou seja, todos os que quiseram modernizar ou actualizar uma determinada narrativa em Portugal. Com o Joaquim Leitão, também. Parece que, antes dele, não houve o António Pedro Vasconcelos e o António Macedo, que obteve um enorme êxito com A Promessa. E o mesmo se passa no teatro com o Filipe la Féria: o Passa Por Mim no Rossio não é um êxito muito maior do que foi, nos anos 60, A Maluquinha de Arroios, encenada pelo Carlos Avilez.

 - Não lhe parece que é lícito os cineastas pensarem que estão agora no princípio do cinema português?
- Mas sempre se pensou isso. A Costureirinha da Sé, do Manuel Guimarães, é considerado um dos piores filmes portugueses, e eu acho-o interessantíssimo. É um filme pobre, limitado, mas estão ali muitas das premissas que fizeram o grande cinema do Jacques Demy. É brilhante, por exemplo, a maneira como ele trata a publicidade, e alguma da planificação. Há coisas que estão ainda muito escondidas por ideologia, porque se decidiu esconder.

 - Mas a ideologia é precisamente a questão. Sabendo nós que as grandes comédias lisboetas são quase filmes políticos por recusarem a política, e têm uma dissimulada carga ideológica ou, melhor dizendo, mitológica, como é que encara o seu sucesso pós-25 de Abril? Com preocupação?
- Com preocupação, no sentido em que vejo a necessidade de uma coisa a que se chamou identidade nacional e que é muito confundida com o fascismo português. É o mesmo êxito do Passa por Mim no Rossio. Pensa-se: estes são os nossos artistas, estes são os nossos bairros, esta é a minha Lisboa, e esse culto é muito confundido com a ideologia do Estado Novo. É uma coisa estranhíssima. Têm grandes actores, mas 99% desses filmes são pura estopada, que não vale a pena sequer voltar a ver. Mas continuam a ser vistos, enquanto muitos outros vão sendo silenciados.

 - Alguns são indiscutivelmente grandes filmes, como "O Pai Tirano". Será que muita gente gosta de bons filmes por más razões?
- Não, O Pai Tirano é inegavelmente um bom filme e acho que toda a gente gosta dele pelas mesmas razões. E o mesmo com A Canção de Lisboa. Há ali um sentido de jogo, brincadeira e alegria que é simples. Agora 99% dos filmes que foram filhos desses são pura estopada.

 - Acha que há aí um sentimento de nostalgia?
- De nostalgia e de reconhecimento dos valores em que toda a família fica unida, do filho à avó.

 - E marchando no sentido inverso ao proclamado Portugal europeu. Quer dizer, é um regresso à pequenez, ao bairro.
- Exactamente.

Pedro Mexia, Dn Jovem